terça-feira, 25 de novembro de 2008

Vários caminhos vão dar a Roma

In "EXPRESSO assinantes":

O 25 de Abril aconteceu num momento ímpar ou, pelo contrário, já tinham ocorrido momentos históricos em que a queda do regime instaurado por Salazar seria mais previsível? O facto de a democracia em Portugal não ter sido negociada, mas resultante de uma ruptura, foi positivo ou negativo para o desenvolvimento do processo político? Qual o peso da Europa e dos Estados Unidos no apoio à luta das forças democráticas durante o PREC? Como se formou a nossa identidade europeia? Questões sobre a mais complexa e precursora das transições democráticas

f1-r1041-hcs Tropas apoiantes do movimento dos capitães, no Terreiro do Paço, no dia da revolução de 25 de Abril

1 - A FRASE é banal: o 25 de Abril abriu a terceira vaga dos processos de democratização. Numa perspectiva comparada, no entanto, ela apresentou singularidades marcantes, a começar pelos actores políticos que desencadearam o fim da ditadura de Marcello Caetano. Ainda sem grandes constrangimentos internacionais pró-democratizadores e em plena «Guerra Fria», a ruptura provocada pelos militares deu lugar a uma crise acentuada do Estado, potenciada pela simultaneidade entre democratização e descolonização.

A transição portuguesa foi a mais complexa da Europa do Sul nos anos 70. Se pedirmos emprestado ao politólogo italiano Leonardo Morlino uma definição de transição, como «o período fluido e incerto em que as estruturas democráticas estão e emergir», mas onde ainda não é claro que regime vai ser instaurado, a sua fase mais complexa decorre entre 1974 e 1976, com a aprovação da Constituição e as eleições legislativas e presidenciais. Concentraram-se nestes 2 anos tensões poderosas na sociedade portuguesa, com alguns elementos de uma conjuntura revolucionária.

f2-r1041-hbs Humberto Delgado com o líder comunista Álvaro Cunhal. A candidatura à presidência do «general sem medo» foi, historicamente, uma oportunidade perdida de derrubar o regime fascista português

2 - A RESPOSTA ao problema da queda da ditaduras é de grande dificuldade. Os historiadores mais simplistas responderão facilmente no caso português. Verão movimentos sociais radicalizando-se no marcelismo, dirão que foi o movimento de crescimento económico dos anos 60, com as suas novas classes médias a demarcarem-se do regime, enquanto outros irão ensaiar hipóteses conspirativas mais viradas para a «longa duração», vendo nos militares, por exemplo, uma vocação democratizante delineada desde os anos 50. No entanto, estes elementos de explicação estão longe de ser claros e em várias ocasiões a queda da ditadura seria mais previsível: na sequência da derrota do fascismo, em 1945; com o movimento de desafeição expresso na campanha eleitoral do general Humberto Delgado; na conjuntura do início da guerra colonial e do golpe de Estado do General Botelho Moniz; para dar apenas 3 exemplos.

Em boa verdade, a grande singularidade do caso português foi precisamente a intervenção democratizante do movimento dos capitães, rara senão única neste século, e que estava longe de ser previsível, muito embora a guerra colonial os tivesse tornado actores centrais de qualquer mudança política.

f3-r1041-hbs Humberto Delgado com Mário Soares

Apesar do efeito surpresa, a intervenção militar deu-se num contexto ditatorial onde existiam elites alternativas que tinham laços sólidos com alguns segmentos da sociedade civil. A presença de uma oposição semi-legal e clandestina diversificada ao Salazarismo, e a emergência da «Ala Liberal» dissidente do marcelismo, muito embora com escassa ligação ao militares que desencadearam o golpe de estado, foi fundamental, pois constitui de imediato uma opção legitimada pelo combate à Ditadura.

3 - AO CONTRÁRIO de Espanha, Portugal conheceu uma transição por ruptura, ou seja sem qualquer pacto ou negociação entre a elite da ditadura e as oposições, mas não existe uma relação directa entre esta acentuada descontinuidade e a radicalização subsequente.

Muito embora uma mobilização anti-ditatorial diversificada tenha sido determinante nos primeiros dias após o 25 de Abril, nomeadamente na imediata dissolução das instituições mais conotadas com o Estado Novo, como a PIDE ou o partido único, e nas ocupações de muito sindicatos, organismos corporativos e Câmaras Municipais, a verdade é que o I Governo provisório bem como uma parte das elites militar e das organizações de interesses apontavam para uma imediata institucionalização de um regime democrático, baseado na convocação rápida de eleições. A própria dinâmica da formação e legalização dos partidos políticos era disso símbolo.

f4-r1041-hbs No próprio dia 25 de Abril, os militares revoltosos ocuparam a sede da PIDE/DGS - a polícia secreta fascista - na Rua António Maria Cardoso. E prenderam, nas ruas, numerosos agentes

A clivagem em torno da descolonização, motor inicial do conflito entre muitos dos obreiros do golpe e o general Spínola, marcou a emergência política do MFA. Reside aqui, creio, a abertura de um espaço de mobilização política e social e a concomitante crise do Estado que pode explicar a incapacidade de as elites moderadas dominarem «por cima» a rápida institucionalização da democracia representativa. Muitos analistas da transição portuguesa salientaram justamente esta «revitalização da sociedade civil», como factor de radicalização, mas convém sublinhar que esta se desenvolve em paralelo com a predominância do chapéu protector de parte do MFA e é dificilmente imaginável sem ele.

Os tímidos movimentos de ruptura simbólica e de elites com o passado começaram então a desenvolver-se. O rápido e multidireccionado movimento de «saneamentos» foi disso exemplo. Após uma decisão de afastamento da elite política da ditadura e de alguns militares, este movimento de «desfascização» começou a envolver a administração pública e o sector privado e caracterizou-se pela sua progressiva radicalidade, atingindo quadros muito abaixo da elite política mais visível do regime deposto, ainda que de forma muito desigual. As reivindicações de criminalização política da PIDE e de outros organismos repressivos também cresceu.

f5-r1041-hbs Ao longo do processo de independência das antigas colónias ultramarinas, cerca de 500 mil pessoas regressaram a Portugal. A chegada dos «retornados» - como passaram a ser chamados - criou um dos mais graves problemas sociais que o país teve de enfrentar no rescaldo da revolução

Foi também sob esta pressão que os partidos que iriam representar a direita e o centro direita se formaram. Após a ilegalização de várias formações, com o 28 de Setembro e o 11 de Março, o CDS, responsável pela integração no sistema democrático de segmentos mais autoritários da sociedade portuguesa, iria estar na fronteira da ilegalização até às primeiras eleições, em 25 de Abril de 1975.

4 - A QUEDA de Spínola, a aceleração da descolonização, a reforma agrária e as nacionalizações, são símbolos e motores de uma acentuada crise do Estado que alimentaram poderosos movimentos sociais. A decisão do MFA de respeitar o calendário eleitoral foi o elemento central da abertura de uma legitimidade fundadora do regime democrático, e a sua realização em 25 de Abril de 1975 dotou os partidos moderados de uma alavanca poderosa.

Seria simplista considerar o «Verão quente» de 1975 apenas como a tentativa do PCP impor uma ditadura apoiada pela União Soviética. Muito embora seja natural que a elite política democrática tenha concentrado aqui o fundamental do seu discurso fundador, ele está longe de esgotar o tema. O desenvolvimento de fortes estruturas políticas de base, como as comissões de trabalhadores, o desafio que a extrema-esquerda representou nesta conjuntura de crise, e a própria penetração política desta nas Forças Armadas são exemplos de uma maior complexidade que passou pelos casos da emissora católica - Rádio Renascença - e do jornal «República», ou pela dinâmica de ocupação de propriedade urbana em Lisboa. As clivagens políticas no interior das Forças Armadas também introduziram alguma autonomia que não pode ser reconvertida em mera «conspiração programada».

f6-r1041-hbs No período pós-revolucionário, as manifestações de rua sucediam-se um pouco por todo o país. Nas grandes cidades, como Lisboa, movimentos populares reivindicavam a legitimidade da ocupação de prédios e habitações devolutos

Portugal conheceu então uma conjuntura de polarização rara neste século, sobretudo pela mobilização anti-revolucionária da província. Muito embora protagonizada pelo PS e PSD em Lisboa e no Porto, à medida que o sector moderado do MFA se preparava para o 25 de Novembro, a mobilização de província a norte do Tejo só é possível com a entrada em cena da hierarquia da Igreja Católica e a mobilização paroquial, em conjunção com a notabilidade conservadora local. Acompanhada pela mobilização de elementos de direita e extrema-direita, militares e civis, a ofensiva anti-esquerdista passou por uma onda de violência política contra as sedes do PCP e da extrema-esquerda, bem como pela emergência de líderes populistas associados às elites rurais.

5 - PORTUGAL sofreu, durante o curto período de 1974-75, uma significativa intervenção externa, não só diplomática como também na própria estruturação dos partidos políticos, organizações da sociedade civil (como sindicatos e organizações de interesse) e na estratégia anti-esquerdista do «Verão quente» de 1975. Por outro lado, o caso português foi tema divergente nos fora internacionais, da NATO à CEE, passando pelas relações entre estas instituições e o então bloco socialista, dirigido pela União Soviética. Quaisquer que sejam os indicadores escolhidos, parece não oferecer dúvidas que o período de 1974-75 em Portugal conheceu grande saliência internacional.

f7-r1041-hbs Em Outubro de 1974, a «ponte Salazar» - a grande obra do Estado Novo que ligou Lisboa a Almada - foi «limpa» das referências ao antigo regime, passando a chamar-se «Ponte 25 de Abril». Uma alteração própria do processo de «desfascização», característico do período pós-revolucionário

Apanhada de surpresa pelo golpe, a comunidade internacional, como particular relevo para os EUA, concentrou-se no apoio às forças políticas democráticas de centro-esquerda e de direita, na metrópole, e no acompanhamento e intervenção no rápido processo de descolonização, particularmente em Angola. Utilizaram-se então métodos herdados do após guerra, particularmente em Itália. Perante uma fortíssima mobilização política e social esquerdista, um tecido económico com um forte sector nacionalizado e a fuga generalizada de capitais e da própria elite económica, os partidos moderados só conseguiram um mínimo de implantação e funcionamento nesta conjuntura de crise com um apoio financeiro e de formação de quadros significativo por parte da administração norte-americana e das organizações internacionais das famílias políticas europeias, com as segundas servindo por vezes de mediadoras do apoio da primeira.

Utilizando um modelo que fará escola noutros processos de transição na América Latina e na Europa de Leste, as fundações associadas às internacionais socialista, liberal e democrata-cristã foram importantes no desenvolvimento das máquinas partidárias e do movimento sindical anticomunista. A mobilização contra a unicidade sindical, a criação da UGT e de algumas associações de agricultores foram fenómenos particularmente marcados por esta dinâmica.

f8-r1041-hbs 11 de Março de 1975: forças militares afectas ao general António de Spínola tentaram mudar o curso da revolução. Um avião da Força Aérea sobrevoou Lisboa e chegou a disparar contra o quartel do Ralis - ataque durante o qual morreu um soldado daquela unidade

Mesmo no caso das movimentações sociais anticomunistas no centro e norte do país, muito embora aqui com peso central de instituições como a Igreja Católica, algum apoio logístico e estratégico foi também marcante, ainda que a torneira aberta aos seus segmentos mais radicais, do MDLP e do ELP tenha sido rapidamente fechada a seguir ao 25 de Novembro de 1975. E aqui, o tecido empresarial nortenho e os serviços de segurança espanhóis foram, eventualmente, mais importantes.

6 - A INTERVENÇÃO militar de 25 de Novembro marcou o passo do processo de consolidação da democracia, com as eleições legislativas e presidenciais de 1976. Muito embora com heranças importantes da transição inscritas na Constituição e uma presença militar no sistema político que se arrastará até princípios dos anos 80, deram-se neste período os passos fundamentais da consolidação da democracia.

A opção europeísta do segmento maioritário das elites políticas portuguesas foi um produto da transição para a democracia e foi um elemento central da sua consolidação. O caso português ilustra bem a tese segundo a qual a Comunidade Europeia, enquanto referência da Europa desenvolvida, foi um símbolo disponível para as elites democráticas legitimarem uma nova ordem interna, após uma transição por ruptura bastante conflitual e o fim do império colonial, que tinha sido o argumento final do Estado Novo.

f9-r1041-hbs Salgueiro Maia, um dos mais destacados capitães de Abril, no dia 25 de Novembro de 1975, quando tropas da Escola Prática de Cavalaria de Santarém fizeram uma paragem na estrada do Norte, a caminho de Lisboa

Foi fundamentalmente no contexto das clivagens políticas de 1975 que os partidos políticos de direita e de centro-esquerda reforçaram a constelação europeia e comunitária como referência para Portugal, perante alternativas socialistas e terceiro-mundistas. No contexto de uma transição polarizada em 1974-75, a opção europeísta foi um elemento central de ruptura com o passado ditatorial, isolacionista e colonial, assumindo simultaneamente um dimensão inicial anticomunista e anti-revolucionária.

Enquanto actor internacional, a CEE foi um observador discreto da transição portuguesa, não deixando de dar sinais políticos a favor de uma democracia pluralista ao mesmo tempo que fornecia algum apoio económico. Seria, no entanto, precipitado considerar a CEE, enquanto actor internacional, um elemento determinante na consolidação da democracia em Portugal. Muito embora vários estudiosos tenham sugerido que a Comunidade Europeia teve um papel importante na promoção da democracia na Europa do Sul, a sua verificação para Portugal foi menos nítida. Para uma parte da elite política portuguesa da época, no entanto, a adesão era vista como uma garantia de consolidação democrática interna e como uma alavanca para a modernização do país.

f10-r1041-hbs Mário Soares na cerimónia de assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia - um momento que marca uma fase de consolidação da democracia portuguesa

7 - AO LONGO dos anos 80, a sociedade portuguesa afastou-se da dupla herança do período autoritário e do processo revolucionário de 1975. Consolidação democrática, adesão à CEE e desenvolvimento económico coincidiram parcialmente no tempo, num círculo virtuoso dificilmente previsível aquando do pedido de adesão.

Em 1990, para surpresa de vários sectores da opinião pública, Portugal abandonou o campo dos países subdesenvolvidos onde tinha estado desde que o conceito fora inventado. Depois de dois acordos complexos com o Fundo Monetário Internacional, chegou a Portugal um fluxo de fundos comunitários de apoio e os seus efeitos começaram a ser sentidos, com as estatísticas a reflectirem uma melhoria visível nas condições de vida, com um desemprego relativamente pequeno. Nos anos 80, Portugal assistiu a um segundo ciclo de crescimento e mudança social. Acentua-se a litoralização da população e a urbanização deu um novo salto, muito embora Portugal permaneça ainda abaixo da média europeia. Mais importante, a quebra da população activa na agricultura foi muito significativa. Sintoma da desagregação da sociedade rural tradicional, ainda dominante no final dos anos 70, na província do Centro e Norte do país, que em vez de emigrar, se dirigiu agora para os centros urbanos nacionais. Acentuou-se também a terciarização e o crescimento das classes médias, com a taxa de escolarização a aumentar significativamente neste período.

f11-r1041-hbs António Guterres na tradicional «fotografia de família» no final da Cimeira Europeia de Berlim

Contrariando as perspectivas mais catastrofistas dos anos 70, Portugal consolidou a sua democracia e deu um salto importante na modernização económica e social, já como membro da União Europeia, vendo-se mesmo obrigado a acelerar a liberalização do seu mercado interno como consequência do aprofundamento da União Económica e Monetária, entretanto acordada. Reafirmando a sua identidade europeia, mantendo-se optimistas sobre a União Europeia e a integração portuguesa ao longo dos anos 80, os portugueses, tanto quando os estudos de opinião publica permitem avaliar, não passaram por sérios problemas de identidade com o fim do império colonial, em 1975, e a sua nova inserção internacional no espaço europeu, em 1986.

Texto de ANTÓNIO COSTA PINTO

Professor de História Contemporânea do ISCTE, autor de O Salazarismo e o Fascismo Europeu (Lisboa, 1992) e Modern Portugal (Palo Alto, EUA, 1998)

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