terça-feira, 25 de novembro de 2008

25 de Novembro - O papão do totalitarismo

In "EXPRESSO":

Os mitos em torno do 25 de Novembro de 1975. Confronto entre ditadura e democracia ou esboroar de uma revolução romântica, à ‘Couraçado Potemkine’, como escreveu, na altura, «Le Monde»?

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ARQUIVO EXPRESSO

O 25 de Novembro de 1975 foi reduzido por quase todos os comentadores ao confronto entre democracia ocidental e totalitarismo soviético. Duas semanas antes, Mário Soares e Álvaro Cunhal tinham protagonizado o famoso debate na RTP do «Olhe que não, doutor...». Henry Kissinger, secretário de Estado de Nixon, tinha visto em Soares e em Cunhal émulos de Kerenski e de Lenine e previsto para Portugal o mesmo desfecho de 1917, na Rússia. Mas era, de facto, isso que estava em causa?

Entre 1974 e 1975 viveu-se um dos períodos mais ricos e agitados da História portuguesa recente. Um regime que parecia eterno caiu num só dia. Sem censura, sem polícia política e sem guerra colonial, o mundo parecia ao alcance da mão. Havia que experimentar tudo o que durante 48 anos fora banido, da Coca-Cola ao Último Tango em Paris, do nudismo à autogestão. Na rua, as coisas avançavam mil vezes mais depressa do que na esfera institucional. Ter um Parlamento eleito e uma Constituição em andamento era bom, mas sabia a pouco. Como dizia, na época, uma canção de Sérgio Godinho: «Só quer a vida cheia quem teve a vida parada» e «A sede de uma espera só se estanca na torrente».

Explodiu uma constelação de experiências, das cooperativas de produção e distribuição às fábricas abandonadas pelos patrões ou pelas multinacionais e geridas por quem lá trabalhava. Num bairro construído longe de tudo, nos arredores do Cacém - Mira Sintra -, os moradores foram criando creches, farmácias e jardins onde nada havia. Alguns dos melhores arquitectos projectaram os bairros das operações SAAL e das cooperativas de habitação.


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ARQUIVO EXPRESSO

Cercado no Quartel do Carmo, a 25 de Abril de 1974, Marcello Caetano chamara Spínola «para o poder não cair na rua». Uma parte já tinha caído. E o resto do poder depressa se tornou multipolar. Um ano depois, os partidos não se entendiam. O Presidente da República, não eleito, era um pólo de conspiração. Estava assinado um pacto entre o Movimento das Forças Armadas e os partidos. O Conselho da Revolução tutelava a produção legislativa. Nos círculos militares vivia-se um delicado equilíbrio. A Igreja virava à direita e amotinava o campo contra o comunismo. Até porque a hiperpolitizada vida de Lisboa aparecia como um universo estranho às populações rurais, cujo quotidiano pouco mudara com o 25 de Abril.

Proliferavam braços armados, da extrema-esquerda à extrema-direita. A polícia não funcionava, substituída pelos militares do COPCON, que, frequentemente, tomavam partido nas ocupações de casas, fábricas ou terras. No final do Verão Quente de 1975, os sectores básicos da economia estavam nacionalizados. Lisboa tinha, semana sim, semana não, grandes manifestações de moradores, trabalhadores, estudantes e soldados, às quais delegações da extrema-esquerda europeia davam um toque cosmopolita. No Norte havia bombas e arruaças contra as sedes do PCP e partidos mais à esquerda. Lá se dizia que Portugal só começava de Rio Maior para norte e que para baixo «era Moscovo».

Entretanto, o antagonismo entre a extrema-esquerda e o PCP era insanável. Mais que uma vez, o serviço de ordem comunista interveio, de forma musculada, contra movimentos de trabalhadores ou de estudantes que não conseguia controlar. Já Mário Soares tinha a apoiá-lo na famosa manifestação da Fonte Luminosa radicais da extrema-direita com quem não se sentaria à mesa. Os diversos poderes político-militares viviam um equilíbrio instável que não iria durar sempre. E a tentação totalitária não estava só do lado da esquerda. O revanchismo dos derrotados do 25 de Abril sonhava com um Pinochet português e o Estádio da Luz cheio de «comunas» para fuzilar...

Ao fim do dia 25 de Novembro de 1975, quando as forças afectas ao VI Governo Provisório neutralizaram as unidades militares contestatárias, houve choro e ranger de dentes dos dois lados. Mais à esquerda acusava-se o PCP de traição por não ter apoiado a resistência nas ruas. No extremo oposto do espectro amaldiçoava-se o major Melo Antunes quando este apareceu na TV a vincar que o PCP era indispensável à construção da democracia.

A 30 de Novembro, escrevia-se em «Le Monde»: «A revolução romântica, à ‘Couraçado Potemkine’, que há um ano incomodava a Europa e inquietava Washington, dissipou-se em 48 horas como uma nuvem de fumo. Alguma vez teria sido outra coisa?»

Ironicamente, em 1980, em novo período agitado, marcado pela bipolarização e pela morte de Sá Carneiro a dois dias das eleições presidenciais, seria Eanes, o vencedor militar do 25 de Novembro, em tempos amaldiçoado pelos sectores à esquerda do PS, a travar nas urnas a viragem à direita que teria representado a eleição de Soares Carneiro. Malhas que a História tece...

TEXTO DE RUI CARDOSO


Era uma vez dois filmes e uma cooperativa

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DOIS FILMES e uma história real documentam a atmosfera turbulenta de 1974/75.

A Confederação, de Luís Galvão Teles (com música de Sérgio Godinho, Fausto e José Mário Branco), foi rodado em 1974/75, mas só exibido em 1978. Um Portugal futuro, perdido entre os espectros do salazarismo e as saudades de uma revolução que não chegou a ser, evocado por imagens a preto e branco. E que degenera numa confederação de dois Estados totalitários, Norte e Sul, de sinal político contrário. No fim, os dois protagonistas (Margarida Carpinteiro e Carlos Cabral) são encurralados por soldados fardados, uns de negro e outros de branco, que lhes perguntam: «Norte ou Sul?» Independentemente da resposta, são fuzilados. Surge, então, a preto e branco, um soldado que diz estarmos a tempo de evitar aquele futuro. E remata, erguendo a G3 acima da cabeça: «O Povo é que faz a História!» É interpretado pelo poeta popular da Lousã Jorge Cortez. «A ideia surgiu-nos antes do 25 de Abril, e a tónica era antifascista. À medida que as coisas foram evoluindo, o Amadeu Lopes Sabino e eu fomos reescrevendo o argumento», resultando, segundo o realizador, «uma ficção científico-política que ganhou alguma intemporalidade».

Bom Povo Português, de Rui Simões (1980), é um documentário cujo olhar é o dos vencidos do 25 de Novembro. Inclui momentos-chave, desde o hastear da bandeira angolana até ao silenciar do capitão Duran Clemente, na RTP, a 25 de Novembro. Ou um Otelo solitário vendo na TV a tomada de posse de Eanes. A voz «off», de José Mário Branco, ironiza sobre a revolução, como quando intercala uma sucessão de «pás» no comentário ao 11 de Março e às nacionalizações. Rui Simões realça que, ao contrário da ficção, o documentário nunca é esquecido por aqueles que põe em causa. «Paguei vários anos de exílio interno por isso até conseguir voltar a filmar». Para acabar o filme teve de comprar imagens à RTP por interposto Thomas Harlan, pois de outra forma eram-lhe recusadas.

O caso da cooperativa Comunal é singular. Nasceu não de uma ocupação de terras mas do seu contrário: a junção voluntária de parcelas para ganhar viabilidade, surgindo uma queijaria, uma carpintaria e uma loja. A produção era vendida às cadeias de supermercados de Lisboa. «Era um projecto de revitalização do mundo rural, semelhante aos que hoje se poderiam fazer com fundos da União Europeia», explica o arquitecto Pedro Lobo Antunes, um dos mentores da Comunal. O coração da cooperativa era Árgea, «uma aldeia especial, com tradição republicana e associativa». Ainda hoje lá está a antiga loja da Comunal, agora um supermercado. Quando foram pedir apoios financeiros, os cooperativistas foram postos pelo Ministério da Agricultura numa situação surrealista: só havia subsídio se houvesse ocupação de terras... A 25 de Novembro, a aldeia foi cercada pelo Exército, à procura de armas. «A única coisa militar que encontraram foram uns colchões, mas nem isso o povo da aldeia os deixou levar», conta Lobo Antunes, agora vereador da Câmara pelo PS, já no segundo mandato. Com o 25 de Novembro, os apoios desapareceram, e a cooperativa foi-se desagregando. (Sobre este tema retenham-se, ainda, os documentários Torrebela, de Thomas Harlan, exibido há dois anos, Outro País, de Sérgio Treffaut, 1998, e o recente As Operações SAAL, de João Dias).

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